PT | EN

 

Dia Internacional dos Monumentos e Sítios

Passados Complexos: Futuros Diversos

18 ABR 2021

 

Comemoremos, na Covilhã, com a esperança possível, o Dia Internacional dos Monumentos e Sítios

Por Elisa Calado Pinheiro
Fundadora do Museu de Lanifícios da UBI

 

1. Breve contextualização

Com a finalidade de, a nível mundial, se sensibilizar os cidadãos para a imperiosa necessidade de se proteger e valorizar o património cultural edificado, desde 1982 que, anualmente, em 18 de Abril, se comemora o Dia Internacional dos Monumentos e Sítios (DIMS), em resultado de uma proposta do Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios (ICOMOS), secundada, no ano seguinte, pela UNESCO.

Este ano de 2021, as propostas de diálogo sobre a situação do património cultural nas suas mais diversas vertentes é norteado pelo lema: “PASSADOS COMPLEXOS: FUTUROS DIVERSOS”. Neste sentido, os participantes nestas comemorações são convidados pelas entidades promotoras desta iniciativa em Portugal, a Direção Geral do Património Cultural e o ICOMOS, “ a explorar a ideia de reconciliação - mas também de contestação e discussão - e o desejo de construir um futuro mais justo, mais participado e mais variado, destacando o papel fundamental do património enquanto factor de identidade e agregação de grupos e de comunidades, nas relações entre culturas e na responsabilização colectiva para a protecção e salvaguarda dos atributos, dos significados e valores que constituem a nossa herança comum”.
Este apelo em torno da proteção e valorização do património concita-nos a juntar a nossa voz à de tantos homens e mulheres de boa vontade que pugnam por efectivas políticas e práticas de verdadeira valorização patrimonial, no nosso país e, especialmente, na nossa cidade, uma vez que o património representa uma das mais importantes dimensões da cultura humana. Como ainda recentemente salientou Guilherme d’Oliveira Martins, a cultura “reúne o que recebemos das raízes, da memória e da herança dos nossos antepassados, à capacidade de fazer da vida um fator de permanente aperfeiçoamento1. O património cultural constitui um direito inalienável de todos os cidadãos, encontrando-se, a nível nacional, plasmado na Constituição da República e ao abrigo de diversos acordos internacionais, ratificados pelo Estado português, devendo a sua proteção ser assegurada por todos os orgãos públicos e garantida através do apoio ativo dos cidadãos. Importa ainda salientar que,  a Lei n.° 107/01, que estabelece as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural, no seu artigo 7.o, alínea 1, defende o seguinte: “Todos têm direito à fruição dos valores e bens que integram o património cultural, como modo de desenvolvimento da personalidade através da realização cultural.”

2. O património em tempos de pandemia

Em 2021, tanto a nível local e nacional, como a nível internacional, constatamos, com grande preocupação, que o contexto de crise pandémica que nos rodeia tem afetado os alicerces das nossas sociedades, aos mais diversos níveis, contribuindo para agudizar as desigualdades e fragilidades nelas existentes. A presente conjuntura exige dos poderes políticos e dos cidadãos um diálogo frutuoso que contribua para a adoção das medidas que se impõem visando proteger os mais vulneráveis, não descurando o património cultural que tão profundamente se tem ressentido dos impactos desta crise. Esta situação tem incidido especialmente sobre os imóveis mais modestos ou menos conformados aos atributos vulgarmente associados à sacralização do património, nomeadamente os estéticos e os resultantes da proximidade quer ao poder quer ao divino. Face a estas múltiplas acepções, podemos considerar que o que atualmente se apresenta mais desprotegido é o que se reporta ao mundo do trabalho, com particular incidência nas sociedades contemporâneas e que, a partir dos anos cinquenta do século XX, passou a estar abarcado pela designação genérica de património industrial.

3. A preservação do património industrial Covilhã

Neste contexto o Museu de Lanifícios da Universidade da Beira Interior encontra-se, uma vez mais, associado a estas comemorações, com um programa próprio, através do qual, especialmente este ano, procura cumprir uma das suas mais importantes missões estatutárias: “a salvaguarda e a conservação ativa do património industrial têxtil (…) numa vasta área que tem por matriz a Serra da Estrela e por centro histórico a cidade da Covilhã” 2 .
Neste sentido, é a partir da Covilhã e do património industrial desta cidade, cujas evidências melhor e mais profundamente representam a identidade dos seus cidadãos, que procuramos incentivar a um diálogo tão frutuoso quanto inclusivo sobre os “futuros diversos” que pretendemos que venham a ser alcançados para garantir a transmissibilidade desta herança milenar. É o património cultural laneiro o que melhor espelha a identidade cultural de toda a Beira Interior, encontrando na Covilhã o território propício à afirmação do valor dos testemunhos do trabalho plasmados no património industrial.

3.1 Emergência e reconhecimento

A Covilhã desenvolveu-se ao longo do tempo enquanto modelo único no nosso país de uma “cidade-fábrica” que foi brotando por todo o tecido urbano, vindo a reconfigurá-lo em função das suas exigências e necessidades. Os covilhanenses foram-se espraiando pelo território fundindo os tempos de trabalho e de vida em edifícios que lhe serviam, simultaneamente, de lar e de oficina. Assim o matraquear dos teares foi ecoando, durante séculos, ao longo das ruas da vila que se fez cidade porque o país e o Estado lhe reconheceram o valor do produto industrial que fabricara dia e noite, porque a cidade sempre viveu exclusivamente em função deste trabalho.
Quando, a partir de inícios da década de setenta do século XX, se compreendeu que o modelo de desenvolvimento económico e social da cidade, baseado na mono-indústria de lanifícios estava esgotado, a Covilhã viu-se confrontada com a maior crise de toda a sua história, uma profunda crise identitária. Restou-lhe então, unicamente, o seu património industrial como o testemunho mais vivo desta vivência milenar. Por este facto, a partir de então, tanto os cidadãos como as instituições e os poderes públicos passaram a valorizar o património industrial da cidade, como veremos seguidamente.

3.2 Instituições e intervenções marcantes na preservação do património industrial covilhanense

Em 1982, o então Instituto Português do Património Cultural procedeu à classificação do conjunto de fornalhas e poços cilíndricos da que viria a ser reconhecida como a área das tinturarias da pombalina Real Fábrica de Panos (Decreto n.º 28/82, DR, I Série, n.º 47, de 26-02-1982).
Seguiu-se-lhe a jovem instituição universitária quando, a partir de 1986/87, no âmbito de um protocolo de colaboração celebrado com a Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial, APAI, promoveu a conservação e a musealização desta área, vindo a institucionalizar o “NúcleoRecuperado da Real Fábrica de Panos” como o primeiro núcleo do Museu de Lanifícios da Universidade da Beira Interior.
Esta intervenção foi considerada de tal modo modelar, a nível nacional, que o Dr. Mário Soares, enquanto Presidente da República, escolheu a Covilhã e a Universidade da Beira Interior para realizar, em 9 de Abril de 1994, no âmbito de uma das suas exemplares presidências abertas sobre o ambiente, uma sessão pública sob o tema da preservação do património industrial. Tive então o privilégio de poder apresentar um conjunto de linhas de ação visando a salvaguarda do património industrial covilhanense 3.
Na qualidade de diretora do Museu de Lanifícios vim, a partir de então, a prosseguir a concretização destas linhas, tendo encontrado a maior abertura por parte das mais diversas instituições e organismos públicos. Nesse sentido promovi a assinatura de um protocolo de colaboração entre a Universidade da Beira Interior e o Instituto Português do Património Arquitetónico, IPPAR, para a realização do Inventário do Património Industrial, cujos trabalhos coordenei, em representação da Universidade da Beira Interior, juntamente com a Sra. Dra. Deolinda Folgado, em representação do IPPAR, entre 1999 e 2001, tendo-se então inventariado 124 unidades patrimoniais, envolvendo edifícios e complexos fabris da Covilhã. Neste contexto foi realizada uma rigorosa avaliação patrimonial destas unidades, tendo-se definido um conjunto de critérios e a partir deles identificado o tipo de proteção a aplicar em cada uma daquelas unidades. Desta análise resultou o primeiro processo de classificação devidamente fundamentado do primeiro conjunto de património industrial proposto para classificação no nosso país, o “conjunto industrial da Fonte do Lameiro”. Constituído por sete unidades fabris localizadas na área abrangida pelas ruas Joaquim Pessoa e Fonte do Lameiro, marginando a ribeira da Goldra, nas proximidades da atual Rotunda do Rato, por serem consideradas representativas dos diferentes períodos históricos e abarcarem a diversidade das operações de transformação da lã em pano, constituíram o primeiro conjunto representativo da diversidade arquitetónica e patrimonial da Covilhã cidade-fábrica, tendo este conjunto integrado, a par da Empresa Transformadora de Lãs, o Tinte Velho.
No âmbito da profícua colaboração desenvolvida entre a UBI e o IPPAR, foi, igualmente, elaborada uma proposta de “Carta de Recomendações do Património Industrial da Covilhã”, resultante da aplicação das boas práticas decorrentes das cartas e convenções internacionais homologados pelo Estado português no domínio do património e em consonância com as técnicas e teorias plasmadas em documentos homólogos aplicados em diversos outros países europeus, nomeadamente em Espanha, visando a implementação de políticas consistentes de proteção do património industrial no âmbito do ordenamento do território. Este documento foi oficialmente assumido pela direção do IPPAR, que o enviou, em Junho de 2002, à Câmara Municipal da Covilhã, para poder vir a constituir um documento orientador de uma consistente política patrimonial da cidade. Lamentavelmente, foi fechado a sete chaves numa gaveta da Autarquia, de onde, até ao momento, não voltou a sair!
Importa ainda salientar que, em 2000, a aplicação do programa POLIS à Covilhã foi justificado, por parte do Ministério do Ambiente, pela necessidade de se promover a salvaguarda do património industrial da cidade e, nesse sentido, a equipa do Inventário do Património Industrial trabalhou em estreita articulação com a equipa do programa POLIS dirigida pelo arquiteto Nuno Teotónio Pereira, com quem foi estabelecida uma profícua colaboração, particularmente no âmbito da execução dos Planos de Pormenor das Ribeiras da Goldra e da Carpinteira e, especialmente, o da Rotunda do Rato envolvendo a área abrangida pelo “conjunto industrial da Fonte do Lameiro”. Com a finalidade de salvaguardar o Tinte Velho e, em simultâneo, encontrar uma solução para a necessidade de se proceder ao alargamento da via que, partindo da rua Marquês de Pombal, no sítio do Pisão Novo, vinha desembocar junto a este edifício, foi acordado, entre a equipa do Programa POLIS e o IPPAR, que fosse feito um corte transversal no edifício da Tinturaria Alçada que ladeava esta via, para a mesma poder vir a ser alargada.
Entretanto, dinamizou-se o processo de classificação da Fábrica Campos Melo, atendendo à situação de transferência de propriedade eminente deste histórico complexo fabril, particularmente relevante por deter ainda evidências muito significativas da Fábrica Velha, a primeira manufatura de Estado edificada na Covilhã, por influência do Conde de Ericeira, em 1677. Para além destas evidências importava ainda salvaguardar um dos mais significativos equipamentos da indústria de lanifícios instalado na Covilhã, o famoso lavadouro de lãs americano, adquirido no âmbito do Plano Marshall, que, de tão tecnologicamente evoluído, teve direito a uma publicação especial que evidenciava as características técnicas que lhe garantiam uma capacidade e produtividade únicas em toda a Península Ibérica. Atendendo às suas dimensões e características específicas constitui um exemplar único, exemplar e singular de elevado valor patrimonial.
Este conjunto de medidas, acompanhado pelas intervenções realizadas pela Universidade da Beira Interior visando a requalificação e refuncionalização de diversos edifícios fabris para instalações universitárias, cujos projectos e respetiva execução arquitectónica e patrimonial garantiram a qualidade que lhes é reconhecida a nível nacional e internacional, constituiu um caso exemplar no domínio da proteção do património industrial.
Concomitantemente, e procurando contribuir para o desenvolvimento sustentado do território, o Museu de Lanifícios, em 2005, inaugurou as instalações da sua sede no complexo da Real Fábrica Veiga, a que viria a juntar as valências de que atualmente dispõe, tendo o Núcleo da Industrialização dos Lanifícios, que constitui a exposição permanente, sido inaugurado em 2010. O Museu, entretanto, desenvolveu três projectos de I&D de elevada importância para a projeção internacional do património industrial da cidade. O primeiro destes, intitulado
ARQUEOTEX (1997-2000), viabilizou a criação de uma rede de património industrial têxtil a nível europeu e permitiu a criação do Centro de Documentação/Arquivo Histórico dos Lanifícios, que constituiu uma das mais importantes valências do Museu e da cidade, neste domínio. Para além deste desenvolveu, igualmente, os projectos Rota da Lã TRANSLANA I e II (2003-2010), que viabilizaram o desenvolvimento de rotas turísticas de âmbito peninsular, a partir da inventariação das unidades de património industrial, assim como das vias da transumância existentes em toda a Beira Interior e na região da Extremadura espanhola. Foram inventariadas, em toda a Beira Interior, 338 unidades fabris, das quais 93 pertencentes ao distrito da Guarda e 245 ao de Castelo Branco. De entre estas últimas, 193 integram o concelho da Covilhã e destas 147 localizam-se no tecido urbano da cidade. No âmbito deste projecto foi inaugurada a Rota da Lã, de natureza transfronteiriça, permitindo estabelecer uma ligação entre dois equipamentos culturais distintivos, na Covilhã, o Museu de Lanifícios da Universidade da Beira Interior e, em Malpartida de Cáceres, o Museu Vostell, que associa a um importantíssimo acervo de arte contemporânea um histórico “Lavadero de Lanas”.

3.3 Disseminação dos resultados

O exemplo da intervenção aplicado pela Universidade visando a valorização do património industrial da Covilhã foi adotado por outras entidades de carácter público e privado. Neste último caso, na Covilhã, distingue-se a Associação New Hand Lab, sediada num edifício fabril do século XIX, que acolhe o trabalho de diversos artesãos, criadores têxteis e artistas plásticos e que, diretamente inspirado nas atividades desenvolvidas pelo Museu de Lanifícios, reforça a sua posição contribuindo para a divulgação das potencialidades da Covilhã no domínio do património e da criação têxtil, situação considerada relevante pela vertente prospectiva que através da valorização artística procura abarcar.
Importa ainda salientar como uma referência da valorização do património industrial da cidade o aparecimento de diversas iniciativas com este objectivo, de entre as quais se distingue, pela projeção alcançada a nível nacional e internacional o Festival WOOL, responsável por promover, a par da cooperação de diversos artistas plásticos, as potencialidades do território aos mais diversos níveis, com especial ênfase na disseminação das tendências artísticas contemporâneas, através de intervenções levadas a efeito no domínio das Artes de Rua (Street Art).

3.4 Exemplos de boas práticas patrimoniais

Diversas empresas e autarquias do país têm desenvolvido múltiplos e coerentes planos de ação no domínio da valorização do património industrial.
Ainda muito recentemente o grupo empresarial Baía do Tejo S.A. acolheu com satisfação a classificação como CIP - Conjunto de Interesse Público do vastíssimo complexo fabril da Companhia União Fabril (CUF), envolvendo o conjunto de imóveis ligados à atividade industrial e à obra social daquela histórica empresa, tendo o mencionado grupo empresarial colaborado na preservação deste património. Desde 2017 que tanto esta empresa como a Câmara Municipal do Barreiro acompanhavam com empenho este processo, como se constata através da seguinte notícia:
"Existe uma preocupação da Baía do Tejo com a defesa do património. Queremos atrair investimento para o parque empresarial, mas respeitando a história e o património. Esta decisão da DGPC em iniciar o processo de classificação vem a favor da preservação", disse Jacinto Pereira, presidente da Baía do Tejo. "Do que propúnhamos no plano, existe um elemento, que são as chaminés, que não está considerado, mas que vamos tentar incluir no prazo de consulta pública. A abertura desta classificação é muito positiva", disse o autarca, lembrando o património também existente ao nível da moagem e do setor ferroviário" 4.
O conjunto classificado abarcou os seguintes imóveis: Casa-Museu Alfredo da Silva; antigo Posto da GNR; Edifícios da primeira geração Stinville (1907-1917); Edifícios da Antiga Central a Vapor; Armazém de Descarga e Moagem de Pirites; Bairro Operário de Santa Bárbara; antiga sede do Grupo Desportivo da CUF; Mausoléu de Alfredo da Silva; Silo de Sulfato de Amónio (1952); Silo de Enxofre (1960); Museu Industrial e Centro de Documentação (antiga Central Diesel, 1928-1937) (Portaria n.º 615/2020, DR, 2.ª série, n.º 203, de 19-10-2020, com 6 zonamentos e restrições urbanísticas). Neste conjunto, apesar do muito diferenciado valor arquitectónico dos edifícios nele incluídos, sobressai o valor patrimonial que a todos envolve.
Um outro caso paradigmático é o do município de S. João da Madeira, que se tornou num verdadeiro exemplo de sucesso, pelas políticas consistentes implementadas no âmbito da valorização das memórias industriais do território que administra. Desde 1997, data em que o Vereador do Pelouro da Cultura acompanhado pela Senhora Dra. Susana Menezes, então ao serviço aquela autarquia, vieram ao Museu de Lanifícios propor voluntariamente este município como parceiro associado do projecto ARQUEOTEX, colaboração que, na qualidade de responsável científica e técnica por aquele projeto, aceitei de imediato e com o maior gosto, até ao presente, a intervenção realizada no território tem contribuído para o desenvolvimento sustentado do mesmo, como se pode verificar através dos resultados alcançados ao nível do incremento das rotas de turismo industrial e do impacto económico e social alcançado por esta via. Após a instalação dos Museus da Chapelaria e do Calçado, a autarquia adquiriu recentemente um imóvel para o transformar em Centro de Memória da Indústria.
A nível internacional, cidades como Biella, Scio e Valdagno, no Norte de Itália e com as quais a Covilhã desenvolveu importantes relações no âmbito da transferência tecnológica e das tendências da moda têxtil, são referências a ter em conta neste domínio.
De igual modo a cidade de New Lanark, na Escócia que, entre 1997 e 2000, desenvolveu um projeto FEDER CULTURA, de âmbito semelhante ao nosso ARQUEOTEX, apesar de diferentemente de nós o mesmo ter sido assumido com o mais elevado empenho pelo poder local, tendo-nos cruzado com os seus promotores em diversos eventos promovidos pela UE, devido às intervenções de valorização do património industrial algodoeiro que ali foram empreendidas, a partir de 2011, esta cidade passou a integrar a lista de Património Mundial da UNESCO.
Para além destes exemplos poderíamos ainda referir a situação atual de muitas das cidades de lanifícios europeias que desenvolveram acções de valorização deste património, em Espanha,Itália, França, Bélgica, Polónia, etc, podendo todas elas servir de inspiração aos nossos decisores políticos, se não lhes faltar a vontade para o efeito.

4. A urgência de novas políticas e práticas de proteção do património industrial da Covilhã

Devido a um conjunto muito variado de circunstâncias, algumas delas decorrentes da atual crise pandémica, o património industrial da nossa cidade encontra-se numa situação deplorável, à mercê dos mais violentos ataques por parte de diversos agentes imobiliários que atuam sem o menor constrangimento. Se esta situação tivesse ocorrido na Atenas do séc. V a. C. eles, por serem considerados inimigos da cidade, desde que a sua identidade fosse conhecida, seriam votados ao ostracismo, o que significava a sua expulsão para sempre.
É um facto que tanto o poder central como o poder local em muito, e de há já alguns anos, contribuíram para esta situação de total desproteção do património industrial covilhanense.
Convém recordar que foi em sessão de Câmara, realizada em 26 de Outubro de 2012, presidida pelo então vice-Presidente, que foi deliberado, no ponto 5.3. da agenda, por proposta do Departamento de Planeamento e Ordenamento do Território “emitir parecer desfavorável à proposta de delimitação das áreas da zona especial de proteção do Conjunto Industrial da Fonte do Lameiro, em vias de classificação como imóvel de interesse público, nos termos em que a mesma é apresentada pela Direção Regional de Cultura do Centro”. Desconhecendo-se a justificação apresentada por este Departamento, depreende-se ser esta mais uma areia na engrenagem visando a não classificação deste conjunto patrimonial. É que esta classificação impunha limites a uma vontade política de tipo voluntarista que não os admitia reconhecer, mesmo quando, como no caso em presença, à data, eram emanados do poder central e próprios de um Estado de direito. Esta situação prenunciava, a partir de então, a morte anunciada deste conjunto patrimonial se nada viesse a ser feito em contrário.
A partir de 2014 e 2015 fiz diversas tentativas para que a autarquia avançasse com uma declaração de interesse na classificação deste conjunto, como era solicitado pela Direção de Cultura do Centro. Só obtive promessas e o silêncio sobre este assunto tornou-se-me cada vez mais ensurdecedor. Percebi, a partir de então, que mais nada podia fazer, restando-me a esperança de que aos interesses imobiliários em presença em diversas frentes restasse um mínimo de respeito pelo património que é de todos os covilhanenses. Algum constrangimento se registou, pois no local só após a destruição do imóvel ali foram afixados os editais camarários de licenciamento da obra e da respetiva demolição, sinal de que as consciências não estavam tranquilas com este e outros processos. Atualmente, na confluência do destruído Tinte Velho, está ainda em causa o destino que irá brevemente sofrer o imóvel que, na Covilhã, é o símbolo da revolução industrial. Trata-se da Fábrica de António Pessoa de Amorim, onde, pela primeira vez em Portugal e não só na Covilhã, foi instalada, em 1815, a primeira roda hidráulica destinada a fazer acionar os mais inovadores engenhos de cardar e fiar. É que na Covilhã, face à carestia da importação do carvão, a revolução industrial fez-se a energia hidráulica e só tardiamente e como complemento desta é que foi utilizada a energia a vapor.
De igual modo, no último ano, precisamente no extremo oposto da cidade, foram realizadas diversas intervenções no conjunto industrial do Sineiro, que descaracterizaram este conjunto, tendo ainda destruído uma das importantes referências da arquitetura industrial do ferro existentes na Covilhã. Em conjunturas como a atual, tem-se acentuado a vulnerabilidade que tanto fragiliza o património industrial por se apresentar desprovido da vigilância protectora dos cidadãos que o procuram defender das múltiplas ameaças à sua integridade.
Importa que se faça um esclarecedor debate na cidade e no país sobre o futuro do património industrial da Covilhã, uma vez que estão em causa valores patrimoniais de interesse nacional, como é o caso, para além dos exemplos atrás enunciados, da histórica Fábrica Campos Melo, cuja importância patrimonial foi já acima referenciada. Este debate deverá ter por instrumento de análise a Carta de Recomendações do Património Industrial, a partir do qual se deverão empreender as iniciativas necessárias visando a sua aplicação, nomeadamente a necessária atualização do Inventário do Património Industrial da cidade. Urge, entretanto, que os serviços urbanísticos autárquicos sejam sensibilizados para os impactos das suas decisões no património covilhanense, particularmente num período como o atual em que, para além das fábricas se tem estado a descaracterizar irremediavelmente o tecido urbano, esventrando habitações modelares para nelas implantar soluções que não têm em consideração o valor patrimonial destes imóveis, praticando unicamente aquilo a que costuma chamar-se de “arquitetura de embrulho”.
Como o lema proposto para este dia de comemorações permite sublinhar, de acordo com a Direção Geral do Património, “os temas controversos implicam conversações complexas, evitando versões distorcidas de um passado mais ou menos recente, afastando tentações revisionistas e atendendo aos contextos específicos em que as acções ocorreram”. Esta situação conduz-nos inevitavelmente a questionar as práticas do passado e a concitar à união de esforços para se poder projectar um futuro mais auspicioso para o património, com a finalidade de assegurar a transmissão da herança que recebemos aos que vierem depois de nós.
É imperioso e urgente encontrar os melhores caminhos para que possa garantir-se e assegurar-se a transmissão desta herança e identificar-se as situações que a fazem perigar. Importa alertar os órgãos de poder e os cidadãos para a missão que lhes compete de salvaguardar o património, nas mais diversas situações e aos mais diversos níveis. Estes abarcam, para além da dimensão universal que todo o monumento representa, as dimensões nacional, regional e local, reconhecendo embora que todas elas se encontram presentes em todo e qualquer monumento, mesmo no mais modesto, como é o caso do Tinte Velho.

 

18 de abril de 2021

 


1 - Diário de Notícias, Opinião, “No Coração de Portugal”, 13-04-2021, p. 9.

2 - Cf. o Regulamento do Museu de Lanifícios da Universidade da Beira Interior, artigo 4º, em www.museu.ubi.pt.

3 - Sob o título “A Covilhã campo arqueológico-industrial. Contributo da Universidade da Beira Interior para a recuperação de uma memória colectiva no âmbito dos lanifícios”.

4 - Cf. Diário de Notícias, Direção-Geral do Património vai classificar imóveis ligados à antiga CUF no Barreiro, 1 de Junho de 2017. https://www.dn.pt/lusa/direcao-geral-do-patrimonio-vai-classificar-imoveis-ligados-a-antiga-cuf-no-barreiro-8526183.html [Acedido em 15-04-2021]